Décio Freitas - O alemão no Sul do Brasil

De Sala Virtual Brusque
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O alemão no Sul do Brasil, um estudo científico

  • DÉCIO FREITAS

A Colonização Alemã no Vale do Itajaí-Mirim, de Giralda Seyferth. Movimento, Porto Alegre, 1974, capa de Mario Hohmelt, 159 páginas.

GIRALDA SEYFERTH
(Curricu1um Vitae)

  • 1) Bacharel em História e Licenciada em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, (UFSC).
  • 2) Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). (Programa de pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional).
  • 3) Diretora em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo (USP). (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas).
  • 4) Professora Assistente de Antropologia do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. (UFRJ).

Tese de Doutorado: “Nacionalismo e Identidade Ética. A ideologia germanista e o grupo étnico teuto-brasileiro numa Comunidade do Vale do Itajaí". Próxima edição da Sociedade Amigos de Brusque.

A região catarinense correspondente ao vale médio do rio Itajaí-Mirim se caracteriza hoje por uma industrialização e uma urbanização que permitem qualificá-la como economicamente desenvolvida. A indústria domina a produção econômica e mesmo na área rural a população se constitui na maior parte de colonos-operários. Trata-se de uma estrutura econômica e social bem diversa da que prevaleceu nos primórdios da colonização quando as características essenciais eram o povoamento rural e a produção camponesa baseada no trabalho familiar em pequenas propriedades.

A reconstituição do processo econômico dessa transformação é a tarefa que se propõe Giralda Seyferth, numa primorosa monografia baseada em pesquisas de arquivo e de campo.

De início, a Autora aprecia a situação da Alemanha na segunda metade do século passado, de onde proveio a maioria dos colonizadores do vale, para concluir que eram de extração principalmente camponesa e secundariamente artesanal Segundo apurou em entrevistas com descendentes de imigrantes as razões mais importantes que induziram os antepassados a deixarem a terra natal foram a escassez de terras, a fragmentação de propriedades, o excesso de trabalho das indústrias e os baixos salários dos trabalhadores rurais ou urbanos. Contribuíram paralelamente fatores extra-econômicos, como as guerras, as revoluções e as perseguições políticas. Seria o caso de dizer-se, em síntese, que a grande emigração do século XIX teve por causa fundamental a incapacidade da atrasada economia alemã para absorver uma crescente população. Nessas condições, a emigração apresentou-se como um meio de exportar excedentes demográficos que ameaçavam perigosamente a estabilidade das estruturas tradicionais. A descompressão social produzida por esse sangradouro demográfico teve como resultado frustar as expectativas de Marx numa revolução aparentemente inevitável.

Instalados em lotes cuja área era em média de 25 hectares, os imigrantes criaram uma sociedade rural e uma economia baseada em unidades familiares mais ou menos auto-suficientes de produção e consumo. Esse sistema econômico-social resultou em grande parte, segundo a Autora do isolamento inicial da área, colonial, do tipo de povoamento, do regime de pequena propriedade e da tradição do campesinato alemão do século XIX.

Uma vez, contudo, que a auto-suficiência não era total, o colono tinha de colocar parte da sua produção no mercado. A comercialização dos excedentes se processava por intermédio dos vendeiros, isso é, proprietários de lojas ou casas comerciais extrategicamente situadas na região colonial. A importância do papel exercido pelos vendeiros foi crucial. Em páginas que figuram entre os pontos altos do livro, Giralda Seyferth põe à mostra o processo pelo qual os vendeiros exerciam pleno domínio sobre a produção econômica dos colonos. Controlavam o comércio e o transporte, impunham os preços do que vendiam ou compravam e, finalmente, guardavam o dinheiro dos colonos. O lucro proporcionado por esse mecanismo era utilizado pelos vendeiros na ampliação dos seus negócios, construindo engenhos e serrarias, melhorando os transportes, acumulando estoques e financiando os colonos mediante empréstimos a juros altos. Em conclusão o vendeiro “conseguiu ficar com a maior parte dos lucros proporcionados pela produção de uma parte dos colonos". E, assim, pode acumular o capital que depois lhe possibilitou implantar a indústria, principalmente a têxtil de Brusque.

Para Giralda Seyferth a industrialização do vale do Itajaí-Mirim saiu da venda e não, como querem alguns Autores, do artesanato. A tese é original pois sempre se atribuiu às burguesias comerciais um papel historicamente parasitário e conservador. Seyferth assinala que Jean Roche chegou à mesma conclusão no que concerne ao Rio Grande do Sul; contudo, cabe observar que o Autor francês é menos categórico, admitindo uma certa participação do artesanato no processo de industrialização (A Colonização Alemã no Rio Grande do Sul, vol. II, capitulo VII). Sustenta a Autora que o artesão não tinha meios de acumular capitais e que a implantação da indústria têxtil em Brusque nada teve a ver com o artesanato.

O papel deste não teria senão o de fornecer mão-de-obra. Ilustra a tese com a história da mais antiga e importante indústria têxtil de Brusque. A industrialização teria sido determinada pela existência de capital local oriundo do comércio; pela potencialidade de um mercado consumidor na região, pela presença de alguns artífices especializados na fabricação de tecidos e pela existência de mão-de-obra aproveitável entre os agricultores: O Vendeiro industrial pôde enfrentar a concorrência dos tecidos estrangeiros mais baratos graças ao expediente de oferecer seu produto diretamente aos colonos, que não tinham noção dos verdadeiros preços.

Sublinha a Autora as profundas mudanças que a industrialização introduziu na estrutura sócio-econômica da região. O sistema produtivo baseado na pequena propriedade familiar entrou em decomposição e os camponeses se viram submetidos a um acentuado processo de proletarização. Passando os membros da família camponesa a trabalhar na fábrica, declinou a produção agrícola dos lotes.

Apesar disso, não desapareceram totalmente as características camponesas do sistema, pois as indústrias, quer por motivos técnicos, quer pelo empenho de aproveitar a mão-de-obra, disseminaram-se por toda a área colonial. Como resultado disso, coexistiu com a categoria tradicional do camponês uma nova categoria social, a do colono-operário, que trabalhava parte do dia na lavoura em sua pequena propriedade e outra parte na fábrica. O aparecimento do colono-operário não fez desaparecer o camponês pois este continuou a manter a sua pequena propriedade. Mas a função econômica desta já não foi mais a mesma e isso devido a uma complexa interação dialética de múltiplos fatores. A carência de terras e o direito sucessório brasileiro pulverizaram a pequena propriedade. A indústria absorveu boa parte do tempo que o camponês tradicionalmente dedicava à lavoura. Ao mesmo tempo, não dispondo de tempo integral para trabalhar na terra, o camponês já não necessitava de tanta terra. Em face disso, as partilhas antes tão evitadas - no Rio Grande do Sul os colonos atenuaram o processo do minifúndio, estimulado pela sucessão causa mortis, mediante o expediente de alguns herdeiros desistirem de seus quinhões nos inventários - converteram-se em rotina, aplicando-se integralmente o direito sucessório brasileiro. Apesar disso, se bem que reduzida, a pequena propriedade agrícola continuou a revestir importância como meio de subsistência para o colono. E isso porque o colono-operário não se mudava para perto da indústria. Permanecia na sua propriedade e se deslocava diariamente até o local de trabalho.

Nesta fase, os camponeses-operários predominavam na indústria sobre os simples operários. A relação se inverteu na última fase do desenvolvimento industrial, iniciada com a Segunda Guerra Mundial. O antigo sistema econômico praticamente desapareceu e a proletarização do camponês se tornou quase completa. Nas palavras da Autora:

“O grande aumento do número de empregados nas fábricas fez com que diminuísse o número de camponeses-operários em relação aos operários.

Mas nem o colono-operário deixa de existir e nem tampouco o pequeno proprietário agrícola é desligado do trabalho industrial. Entretanto, o aspecto do campo se modifica em função dos tipos de cultivo voltados a finalidades industriais, por causa das pequenas indústrias de transformação de produtos agrícolas que se multiplicam na área. Do campesinato tradicional na área correspondente ao médio vale do Itajaí-Mirim só ficou mesmo o regime de pequena propriedade trabalhada pela família e a divisão do trabalho com base na composição familiar. Mesmo na área rural vamos encontrar entre as propriedades puramente agrícolas operários e colonos~operários que se deslocam diariamente até as fábricas.

O estudo de Giralda Seyferth impõe que se reconheça o papel altamente progressista desempenhado pela burguesia comercial do vale médio do Itajaí-Mirim. Seria igualmente interessante acentuar que o isolamento espacial e cultural em que viveram as primeiras comunidades de imigrantes alemães não significou um isolamento econômico. Muito pelo contrário tanto em Santa Catarina como no Rio Grande do Sul, essas comunidades se entroncaram desde o início numa pré-existente economia de mercado que absorvia os seus excedentes. Não fora isso, tais comunidades se teriam visto condenadas à estagnação. Mais ainda, o preexistente mercado consumidor provinha do fato de que as sociedades do Sul brasileiro se caracterizavam pelo predomínio de relações sociais de produção não escravistas. E, por fim, cumpre não esquecer que a industrialização foi possível graças ao protecionismo aduaneiro estabelecido pela República. Será pura coincidência que a industrialização somente tenha tido início depois da República?

O livro de Giralda Seyferth representa a melhor contribuição científica já prestada ao estudo da colonização germânica no Sul do Brasil. De uma maneira geral consegue galhardamente evitar o empirismo quase inerente às monografias. E não é um dos seus menores méritos a coragem desmistificadora com que aborda certos aspectos do tema.

(Transcrito do “Jorna1 do Brasil", Rio de Janeiro - 18.1.1975)

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